quarta-feira, 31 de março de 2010

Eu-te-amo

Tudo está no lance: é uma “fórmula”, mas essa fórmula não corresponde a nenhum ritual;
as situações em que digo eu-te-amo não podem ser classificadas: eu-te-amo é irreprimível e imprevisível.
A que ordem linguística pertence pois esse ser bizarro, esse arremedo de linguagem, por demais fraseado para resultar da pulsão, por demais gritado para resultar da frase? Não é nem totalmente um enunciado (nenhuma mensagem aí está congelada, armazenada, mumificada, pronta para a dissecção), nem totalmente enunciação (o sujeito não se deixa intimidar pelo jogo dos lugares interlocutórios). Poderíamos denominá-lo proferição. Para a proferição, nenhum lugar científico: eu-te-amo não pertence nem a linguistica nem à semiologia. Sua instância (aquilo a partir de que podemos falá-lo) seria antes a Música. A semelhança do que acontece com o canto, na proferição do eu-te-amo, o desejo não é nem recalcado (como o enunciado), nem reconhecido (justamente onde não se esperava: como na enunciação), mas simplesmente: gozado.
O gozo não se diz; mas ele fala e diz: eu-te-amo.


[BARTHES, Roland. Eu-te-amo. In: Fragmentos de um discurso amoroso. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 176]

sexta-feira, 26 de março de 2010

Para ela. No dia dela.

Mais do que os olhos,
o olhar.
Mais do que as cores,
o azul.
Mais do que o mar,
a fluidez.
Mais do que os gestos,
a delicadeza.
Mais do que as palavras,
a sutileza.
Mais do que as marcas,
a suavidade.
Mais do que as representações,
a intensidade.
Mais do que a beleza,
a vida.

mais do que os olhos que reunem as cores de um mar repleto de gestos e palavras representativas de uma beleza,
uma garota de olhar azul, fluindo nas marcas de uma delicada sutileza, movida por uma intensa e suave forma de viver.

Porto (melanco)Alegre

Chove na tarde fria de Porto Alegre
Trago sozinho o verde do chimarrão
Olho o cotidiano, sei que vou embora
Nunca mais, nunca mais

Chega em ondas a música da cidade
Também eu me tranformo numa canção
Ares de milonga vão e me carregam
Por aí, por aí

Ramilonga, Ramilonga

Sobrevôo os telhados da Bela Vista
Na Chácara das Pedras vou me perder
Noites no Rio Branco, tardes no Bom Fim
Nunca mais, nunca mais

O trânsito em transe intenso antecipa a noite
Riscando estrelas no bronze do temporal
Ares de milonga vão e me carregam
Por aí, por aí

Ramilonga, Ramilonga

O tango dos guarda-chuvas na Praça XV
Confere elegância ao passo da multidão
Triste lambe-lambe, aquém e além do tempo
Nunca mais, nunca mais

Do alto da torre a água do rio é limpa
Guaíba deserto, barcos que não estão
Ares de milonga vão e me carregam
Por aí, por aí

Ramilonga, Ramilonga

Ruas molhadas, ruas da flor lilás
Ruas de um anarquista noturno
Ruas do Armando, Ruas do Quintana
Nunca mais, nunca mais



Do alto da bronze eu vou pra cidade baixa
Depois as estradas, praias e morros
Ares de milonga vão e me carregam
Por aí, por aí

Ramilonga, Ramilonga

Vaga visão, viajo e antevejo a inveja
De quem descobrir a forma com que me fui
Ares de milonga sobre Porto Alegre
Nada mais, nada mais.

sábado, 20 de março de 2010

Uma singular virtude

Prostrado, no vazio da sala, de frente para a foto, cuja minúscula existência tem o poder de fazê-lo sentir-se menor ainda, fita o presente, ciente de um passado quase atual, no qual a única certeza é a da execução de mais um, entre já tantos outros (bem) feitos, pequeno suicídio.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Carta a Charlie Brown


E aí Charlie Brown, como vão as coisas? Lembrei de você por a pouco ter estado cercado de crianças. Tínhamos tantas afinidades quando eu era uma... Lembra das sagradas manhãs de domingo? Nunca mais Charlie Brown. Culpa minha, eu sei. Meio sem querer eu cresci, acontece. Você nem imagina o rumo que as coisas tomaram, meu chapa. Sua popularidade foi severamente diluída com o passar dos anos, e as crianças de hoje em dia possuem outros interesses que não sua amizade. Atualmente o nome Charlie Brown remete a uma banda, e ninguém mais recorda com tanta frequência do menino vestindo um suéter amarelo com zig-zag marrom.

De coração, sempre te considerei um amigo. Espectador assíduo dos seus desenhos animados e leitor ávido de sua tirinhas de jornal, minha infância é eternamente marcada pela sua existência. Veja você, por sua causa e do seu cão Snoopy meu sonho era voar em cima de uma casinha de cachorro vermelha (tinha inveja do Woodstock), diferente dos outros meninos da minha idade que desejavam pilotar aviões supersônicos ou 737´s. Estranho, não é mesmo? Naquela época ainda não havia percebido ao certo qual seria o tipo de identificação que justificasse tamanha adoração. Apenas sei que ela não ficou barata durante os anos – para o meu bem, esteja certo. Há muito tempo, quando cursava a oitava série, uma amiga cismou que eu parecia com você. Não em aparência, Charlie Brown, de maneira alguma me assemelho com as feições contidas em sua cabeça redonda. Ela falava do estilo perdedor que compartilhávamos; na verdade algo muito além de nossa própria vontade. Afinal não poderia ser de livre escolha que você jamais ganhou um jogo de baseball ou foi capaz de conquistar a menina ruiva. Nós dois sabemos disso. Você errava todos os chutes na bola que Lucy segurava, nunca conseguiu empinar uma pipa, enfim, sempre chovia em seu desfile, Charlie Brown. Você era pessimista demais para dar certo, guri. Passou a vida inteira queixando-se por ninharias, mas quem o havia de convencer que não eram ninharias realmente? Você é o desenho animado mais deprimido já feito, dizia essa amiga com certa espirituosidade, traçando desta forma a nossa semelhança. Minduim era meu novo pseudônimo, secretamente mantido em nossa intimidade pueril.

Charlie Brown, nunca tive a oportunidade de praticar o seu baseball. Aqui no Brasil os esportes são outros, e ainda que eu jogasse futebol todos os dias, nunca fui capaz de fazê-lo direito. A menina ruiva, na verdade... Bem, é melhor deixarmos isso de lado. Pra piorar as coisas, meus infortúnios ganhavam independência dos seus conforme os anos vieram (eu cresci, você não, lembra?). Na escola nunca tive maiores destaques, com exceção de um dia, no extinto segundo grau, quando declamei uma poesia em sala de aula em que o efeito foi bem marcante. Na faculdade, saí assim como entrei, ou seja, despercebido. Nem mesmo com as pipas me dava bem, geralmente não as tirava do chão.

Deve ser bem por isso que sua existência me dava um certo conforto. Cumplicidade é tudo o que uma criança insegura precisa para superar as desventuras que lhe abatem. Sabe, Charlie, lembro-me vividamente da vez em que, com você estampado em minha camiseta, recebi, no hall de entrada de um hospital, a pior notícia, até então, de minha vida. Naquela noite de setembro senti a dor miserável de um eterno desalento, que ainda hoje perdura. Eu não era mais criança, Charlie Brown, mas a dor era tão próxima a que senti quando, agora sim, ainda criança, chorando de olhos abertos, sem desgrudar um único segundo da tela, eu assistia, por um triz, você não vencer o primeiro jogo de sua vida. Também por um triz eu não evitei o pior naquela fatídica noite. Por um triz, amigo. Por um triz.

Quando Charles Schultz, seu criador, deixou nosso mundo há alguns anos, encerravam-se assim suas histórias, aprisionando-o para sempre em derrotas e desafetos. Você ficou aí, para sempre criança, perdido, seguindo o karma de uma popularidade às avessas e sem conseguir conquistar a garotinha ruiva. E da mesma forma que seu universo teve um fim, minha infância também o teve. É tão difícil encontrar culpa quando não nos foi dada qualquer escolha... Mas quem se atreve a dizer que não valeu a pena?

Apesar da sua tendência em deixar-se abater, e por mais que nós dois vivêssemos glamourisando situações de real desalento, como se estivéssemos predestinados a elas, nunca desistimos de ser sublimes. As ninharias das quais você se preocupava são apenas nossas vidas, escancaradas, tão reais que machucam aqueles que ousam viver de verdade. Custou a perceber que você não era um pessimista inveterado, mas alguém autêntico, ciente de que essa obrigação de vencer só pode ser uma alucinação coletiva de um mundo impiedoso, sem segundas chances. Graças a você eu cresci sem a obrigação implacável de dar certo (e não dei mesmo), de estar sempre provando alguma coisa. Cresci livre, porém, com o passar dos anos, aprisionei-me. Desculpa, amigo. Não consegui manter nosso pacto de jamais, por mais penoso que seja, desistir da vida. Fracassei, Charlie. Admito que fracassei.

Mas tentarei, outra vez, Minduim. Prometo. Afinal de contas, aprendi contigo que é arriscado, mas eu dou lá as minhas risadas.

Obrigado, amigo.

sábado, 13 de março de 2010

"Te(A)mo"


Um filme (ou olhares) que vale(m) uma vida.



"como se faz para viver uma vida vazia, cheia de nada?"

sexta-feira, 12 de março de 2010

A montanha (ler ao som de "A Montanha Mágica")

Dias desses, numa loja de antiguidades, avistei um quadro, uma tela já desbotada, retratando um pequeno acampamento de alpinistas no sopé da montanha que surge em segundo plano. Das quatro pessoas que formam o grupo, três estão sentadas em volta de uma fogueira, formando uma pequena roda, enquanto outra, trazendo consigo uma volumosa mochila, permanece em pé, observando a paisagem que o desafia. Gigante acinzentada com o topo alvejado pela neve, imponente e inacessível, a montanha parece ser a única coisa importante na vida daquele obcecado alpinista. Claro que, por uma simples questão de sensibilidade, ele acaba se tornando o personagem que mais desperta a curiosidade de quem observa o quadro. Talvez por estar de costas e ser o único a não revelar o rosto, quem sabe. Mas é desconfortante pensar que durante toda a eternidade aquela pessoa permanecerá ali, estática, contemplando a imponência da montanha como quem se frustra por saber que, não importa o quanto se esforce, jamais vencerá o desafio.

Pasmo, fiquei ali, pensando em tais possibilidades e, porque não, brincando de estar no lugar daquele alpinista. Imagine só, ter que escalar uma montanha como aquela mochila pesando nas costas. Seria bastante trabalhoso. Avaliando meus três companheiros de viagem, diria que o primeiro poderia ser do tipo que nem me conhece, portanto não me ajudaria. O segundo seria aquele que até gostaria de colaborar mas, assim como eu, também carrega sua mochila. O último, mais reconfortante, dividiria o peso comigo e me acompanharia rumo ao topo. Pensando bem, qualquer um deles serviria para me ajudar nesta noite, juro mesmo. Mas neste momento não existe vida por aqui. Ninguém para dizer "foda-se, se vira!", ninguém para me dar uma desculpa barata. Deve até ser por isso que estou escrevendo. O faço geralmente quando me encontro nestas condições. Na verdade nem existe uma montanha para subir, estou apenas no meu quarto. Também não trago uma pesada mochila nas costas. Mas sei que preciso chegar lá, e existe algo que me impede mais do que qualquer fardo.

Não conheço minha montanha, muito menos minha mochila. E em dias como esse, quando meu pensamento percorre rumos incompreensíveis até para eu mesmo, que eu gostaria de ser aquela pessoa feita de tinta óleo.

quinta-feira, 11 de março de 2010

Quando você (não) está

À espera do que já não faz mais saudade,
sigo inventando mundos nos quais
minha existência ainda faça algum sentido -
mínimo que seja.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Fim

De um jeito ou de outro, tudo acaba.