quinta-feira, 18 de março de 2010

Carta a Charlie Brown


E aí Charlie Brown, como vão as coisas? Lembrei de você por a pouco ter estado cercado de crianças. Tínhamos tantas afinidades quando eu era uma... Lembra das sagradas manhãs de domingo? Nunca mais Charlie Brown. Culpa minha, eu sei. Meio sem querer eu cresci, acontece. Você nem imagina o rumo que as coisas tomaram, meu chapa. Sua popularidade foi severamente diluída com o passar dos anos, e as crianças de hoje em dia possuem outros interesses que não sua amizade. Atualmente o nome Charlie Brown remete a uma banda, e ninguém mais recorda com tanta frequência do menino vestindo um suéter amarelo com zig-zag marrom.

De coração, sempre te considerei um amigo. Espectador assíduo dos seus desenhos animados e leitor ávido de sua tirinhas de jornal, minha infância é eternamente marcada pela sua existência. Veja você, por sua causa e do seu cão Snoopy meu sonho era voar em cima de uma casinha de cachorro vermelha (tinha inveja do Woodstock), diferente dos outros meninos da minha idade que desejavam pilotar aviões supersônicos ou 737´s. Estranho, não é mesmo? Naquela época ainda não havia percebido ao certo qual seria o tipo de identificação que justificasse tamanha adoração. Apenas sei que ela não ficou barata durante os anos – para o meu bem, esteja certo. Há muito tempo, quando cursava a oitava série, uma amiga cismou que eu parecia com você. Não em aparência, Charlie Brown, de maneira alguma me assemelho com as feições contidas em sua cabeça redonda. Ela falava do estilo perdedor que compartilhávamos; na verdade algo muito além de nossa própria vontade. Afinal não poderia ser de livre escolha que você jamais ganhou um jogo de baseball ou foi capaz de conquistar a menina ruiva. Nós dois sabemos disso. Você errava todos os chutes na bola que Lucy segurava, nunca conseguiu empinar uma pipa, enfim, sempre chovia em seu desfile, Charlie Brown. Você era pessimista demais para dar certo, guri. Passou a vida inteira queixando-se por ninharias, mas quem o havia de convencer que não eram ninharias realmente? Você é o desenho animado mais deprimido já feito, dizia essa amiga com certa espirituosidade, traçando desta forma a nossa semelhança. Minduim era meu novo pseudônimo, secretamente mantido em nossa intimidade pueril.

Charlie Brown, nunca tive a oportunidade de praticar o seu baseball. Aqui no Brasil os esportes são outros, e ainda que eu jogasse futebol todos os dias, nunca fui capaz de fazê-lo direito. A menina ruiva, na verdade... Bem, é melhor deixarmos isso de lado. Pra piorar as coisas, meus infortúnios ganhavam independência dos seus conforme os anos vieram (eu cresci, você não, lembra?). Na escola nunca tive maiores destaques, com exceção de um dia, no extinto segundo grau, quando declamei uma poesia em sala de aula em que o efeito foi bem marcante. Na faculdade, saí assim como entrei, ou seja, despercebido. Nem mesmo com as pipas me dava bem, geralmente não as tirava do chão.

Deve ser bem por isso que sua existência me dava um certo conforto. Cumplicidade é tudo o que uma criança insegura precisa para superar as desventuras que lhe abatem. Sabe, Charlie, lembro-me vividamente da vez em que, com você estampado em minha camiseta, recebi, no hall de entrada de um hospital, a pior notícia, até então, de minha vida. Naquela noite de setembro senti a dor miserável de um eterno desalento, que ainda hoje perdura. Eu não era mais criança, Charlie Brown, mas a dor era tão próxima a que senti quando, agora sim, ainda criança, chorando de olhos abertos, sem desgrudar um único segundo da tela, eu assistia, por um triz, você não vencer o primeiro jogo de sua vida. Também por um triz eu não evitei o pior naquela fatídica noite. Por um triz, amigo. Por um triz.

Quando Charles Schultz, seu criador, deixou nosso mundo há alguns anos, encerravam-se assim suas histórias, aprisionando-o para sempre em derrotas e desafetos. Você ficou aí, para sempre criança, perdido, seguindo o karma de uma popularidade às avessas e sem conseguir conquistar a garotinha ruiva. E da mesma forma que seu universo teve um fim, minha infância também o teve. É tão difícil encontrar culpa quando não nos foi dada qualquer escolha... Mas quem se atreve a dizer que não valeu a pena?

Apesar da sua tendência em deixar-se abater, e por mais que nós dois vivêssemos glamourisando situações de real desalento, como se estivéssemos predestinados a elas, nunca desistimos de ser sublimes. As ninharias das quais você se preocupava são apenas nossas vidas, escancaradas, tão reais que machucam aqueles que ousam viver de verdade. Custou a perceber que você não era um pessimista inveterado, mas alguém autêntico, ciente de que essa obrigação de vencer só pode ser uma alucinação coletiva de um mundo impiedoso, sem segundas chances. Graças a você eu cresci sem a obrigação implacável de dar certo (e não dei mesmo), de estar sempre provando alguma coisa. Cresci livre, porém, com o passar dos anos, aprisionei-me. Desculpa, amigo. Não consegui manter nosso pacto de jamais, por mais penoso que seja, desistir da vida. Fracassei, Charlie. Admito que fracassei.

Mas tentarei, outra vez, Minduim. Prometo. Afinal de contas, aprendi contigo que é arriscado, mas eu dou lá as minhas risadas.

Obrigado, amigo.

Um comentário:

Unknown disse...

Há tempos não lia algo tão real sobre o melhor desenho já feito, mas, Charlie Brown é muito mais do que um desenho não é?
Parabéns pela carta!