segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Tardiamente arrebatador

Nunca tinha avistado a cidade daquele ângulo. Parecia que a qualquer momento iria ser tragado pela eloqüência daquele entardecer outonal. As ruas, suas esquinas; o tráfego insistente dos carros soando suas buzinas; e as primeiras luzes que se acendiam com a proximidade sorrateira e sapiente da noite, tornavam-se, daquela altura, apenas micro explosões de um inverno a se aproximar.
Ao longe, no esquadrinhamento de seu olhar, pôde, sem antes soltar um fundo suspiro, vislumbrar um belo pôr-do-sol, que, aos poucos, inexoravelmente, mergulhava naquelas águas. Águas que por sua fluidez e por seu bucólico silêncio paralisante, contrastavam com os ruídos e velocidade das ruas.
Paralisante foi o efeito de sua chegada. Ele, ao ver a porta se abrir, mergulhou seus olhos na fluidez daquele olhar. E, por segundos, nada mais importava a não ser aquele olhar.
Imediatamente voltou a si, convidando-a para se aproximar à sacada e, juntos, contemplarem o surgimento das primeiras estrelas no céu.
Após um longo silêncio apaziguador que se fez entre os dois, tocou-a levemente na mão. Seus dedos se entrelaçaram tal qual o sol entrelaçara-se, há alguns segundos antes, com as águas do rio.
Dopado pelo cheiro de seu corpo, abraçou-a inapelavelmente. Seqüências de suspiros brotaram daquele abraço, para, em seguida, seus olhares se encontrarem. Abruptamente uma onda de calor tomou seu corpo, arremessando seus lábios em direção aos lábios dela.
Afetado pelo momento passou a desejá-la urgentemente. Parecia que iria lhe faltar mãos, boca e língua para consumar aquele acontecimento. Queria, assim como as águas do rio fizeram com o sol, tragar com sua língua toda a vida que nela se concentrava.
De olhos fechados afundou seus dedos em seus cabelos. Dilacerado internamente, decidiu ir adiante. Paradoxalmente, sentia que morria e sofria por dentro, mas precisava prosseguir para sentir-se vivo outra vez. Necessitava ir até o fim, até o fundo. Desejava despedaçar sua carne contra o corpo dela, sentir seu perfume em seus pêlos. Com o corpo tremendo, mas em riste, tocou-a mais profundamente. Num jogo de ternura, suas mãos voltaram a se encontrar, assim como suas coxas e suas pernas num embate frenético de idas e vindas. Um campo de forças se degladiando. A tessitura de sua pele, de seus cabelos, deixavam-o ainda mais ferido. Mas, no entanto, era preciso seguir em frente. Puxou-a para si, corpos já colados e esparramados no assoalho, genitais latejantes e um golpe só, seco e profundo. Tudo explodia num plano muito mais alto, muito mais intenso, imensurável desejo transgressor. Dentes se chocando, lábios se tocando, mãos se esmagando numa fúria alucinante. De repente, um grito, uma angústia de saber que sua busca era em vão.
Naquele instante, algo morria nele. A sacada parecia ter-se estilhaçado em inúmeros pedaços de vidro que o cortavam sem piedade alguma. De fato, não era, não podia ser amor.
Transtornado, juntou suas roupas e aquilo que ainda havia sobrado dele. Vestiu-se apressadamente e, sem dizer nem mesmo um simples adeus, partiu, como um vetor desgovernado, em direção às escadas do prédio. Queria sair dali o quanto mais antes possível. Já na rua, não sabia mais se era dia ou noite, outono ou inverno.
Aterrorizado, jogou-se pra dentro do primeiro ônibus que viu passar. No trajeto, avistou apenas outdoors que cortavam a arquitetura da cidade como se fossem gigantes luminosos. Suado e ofegante, contava os minutos para chegar em casa, sem pensar no que aconteceu.
Fim de percurso. Territorializado, ao menos literalmente, só pensava num banho. Desejava eliminar qualquer vestígio dela que ainda pudesse estar pousando sobre sua epiderme. Até mesmo uma possível saliva que ainda lhe fazia sentir o gosto de sua boca, queria deixar escorrer ralo abaixo. Enfim, desejava afogar naquele banho qualquer possibilidade de que um dia poderia ter dado certo.
Cansado e nú, deixou seu corpo estatelar-se no sofá. Ligou a televisão. Desligou a televisão. Ligou o rádio. Chico Buarque de Holanda agora não. Desligou o rádio. Sentiu seu peito se comprimir numa força demasiadamente estranguladora. Não gritou. Não chorou. Apenas sentiu.
Suspirou. Estava exausto.
Sabia que a queda seria vertiginosa. Tinha noção de sua altura e do tamanho de seus cacos. Cedeu, e sabia o preço que teria que pagar por não ter fugido antes. Sabia também que quem buscou foi ela, não ele. Por outro lado, tinha a plena convicção de que uma vez consumado, o dilaceramento seria somente seu, como foi só dele o desespero.
Logo ele, que queria tanto trazer-lhe paz, ser sua paz. Dar-lhe o que tinha, sem exigências, sem cobranças. Mas ele abraçou a queda. Flertou com ela. E nesse acolhimento, caiu. Espatifou-se. Espedaçou-se. Perdeu-se. E, agora, nada mais existia além de um corpo cansado, arrastado, moribundo.
Não se dera conta de que havia amanhecido. Levantou-se, ainda nú, e caminhou até a sacada de seu andar. No reflexo do vidro, enxergou-se mas não se viu. Constatou apenas olheiras e uma barba ainda por fazer. Estava frio, agora. Um vento gelado entrou por suas narinas. Respirou. De sua boca exalou um hálito quente e forte, que se dissipou no ar frio do dia que começava a acontecer. O parapeito da sacada era seu limite. Uma breve linha tênue entre o ontem e o hoje. Fechou os olhos. Contraiu as mãos. Flexionou os pés pra frente. Cerrou os dentes. E quando, por fim, impulsionou seu corpo mais à frente, um vento frio tocou seu corpo rígido e tenso.
Lentamente, abriu os olhos, descontraiu as mãos, desflexionou os pés e descerrou os dentes. Nada mais além de um vento. O primeiro vento de mais um inverno que acabara de chegar.
Com os ombros caídos, afastou-se da sacada, apanhou um cobertor, enrolou-se, dobrou-se e curvou-se sobre si mesmo. Sequer chorou, apesar da vontade. Lágrima presa na garganta, cabeça afundada entre as pernas, um Coltraine tocando ao fundo, um cigarro aceso e uma constatação apenas, a de que era tarde, muito tarde. Tarde demais.

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